Quando se fala na dimensão dos direitos humanos, o que as pessoas conseguem compreender? Essa dimensão está baseada em um único princípio universal que a sociedade procurou e procura garantir a todos os indivíduos diante da sua evolução histórica: a dignidade da pessoa humana.
A teoria da evolução histórica dos direitos humanos foi criada por Karel Vasak, que classificou em gerações de direitos, as categorias de direitos que foram se formando e que estão sempre se desenvolvendo diante do contexto histórico. E, para cada momento, foram reivindicados novos direitos para uma melhor condição de vida digna dos indivíduos, ampliando o rol dos direitos fundamentais já existentes.
Nos dias atuais não seria diferente, com a evolução da tecnologia e da ciência, por meio da engenharia genética, foi possível estudar o genoma humano e, por ela, manipular os dados genéticos que caracterizam o indivíduo para combater doenças patológicas e prolongar a vida do ser humano.
Contudo, a manipulação do genoma trouxe à tona a ideia de eugenia negativa que busca a “purificação de uma espécie”. Com esse controle, as características raciais como a cor da pele, dos olhos e do cabelo, podem ser alterados compactuando com a crença da supremacia branca, que nada mais é do que uma estratégia que visa a dominação para colonizar uma raça, moldando perversamente as mentes de pessoas brancas e de pessoa negras que, neste processo, trazem consigo imensos processos de desumanização.
"Os direitos não nascem todos de uma vez [...]. Nascem quando surge o aumento do poder do homem sobre o homem – que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens." Bobbio (2004, p. 6)
O artigo “Ideologia da supremacia racial branca: processos de colonização e descolonização”, de Simone Gibran Nogueira, aponta todo o dano psicológico no processo de dominação através da colonização:
"Quando os afrodescendentes internalizam essa imposição ideológica da supremacia racial branca e a dupla negação de si mesmos, eles tendem a desenvolver um "desejo de se aproximar da brancura"" (p. 289).
Esse desejo, segundo Nobles (2009) e Akbar (2004), caracteriza uma condição psicológica debilitante, patológica e destrutiva. De acordo com Nobles (2009) quando:
"Os africanos no Brasil, como em todos os lugares, independentemente da mistura biológica, têm esse desejo incontrolável de ser branco, de querer se aproximar da brancura, ou de ter a ilusão de que não são negros; eles devem ser diagnosticados clinicamente como sofrendo de traumas causados por experiências prolongadas e constantes de terrorismo psicológico." (p. 289)
Ao analisar o avanço da tecnologia é necessário prevenir os malefícios que esta pode trazer para o futuro da humanidade, resguardando o princípio da dignidade humana. E, para isso, os valores morais compartilhados pela sociedade e positivados pela legislação, como mostrados a seguir, podem e devem conservar o patrimônio genético através do controle estatal.
O Código de Ética Médica prevê que:
Art. 7º O médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando sempre em benefício do paciente. Jamais utilizará seus conhecimentos para gerar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir ou acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade.
Segundo Nalini (2008), a ética é uma matéria que vai disciplinar o comportamento humano em uma determinada profissão, para que as ações sejam aprimoradas pela moral. A bioética surgiu para evitar e responsabilizar práticas abusivas dos profissionais que lidam com o genoma humano.
Conti (2004) retrata que a bioética tem como finalidade a harmonização do “uso das ciências biomédicas e suas tecnologias com os direitos humanos". Já Maria Helena Diniz (2009) classifica a bioética em: a) bioética das situações persistentes que se ocupa de temas como aborto, eutanásia, discriminação social) e b) bioética das situações emergentes trata da contradição entre o progresso biomédico e os limites da dignidade da pessoa humana.
Assim sendo, a quarta geração de direitos surgiu e exigiu a imposição de limites por parte do estado a fim de fiscalizar a manipulação do genoma humano e, consequentemente, resguardar o patrimônio genético assegurando assim o direito à diversidade e à individualidade da pessoa humana, que são elementos intrínsecos à dignidade humana diante da iminente ameaça de discriminações genéticas, trazendo consigo segregações raciais que compactuam com nazismo e que foi fortemente combatida pela declaração universal de direitos humanos.
O código de Hamurábi foi o primeiro código que visou proteger os mais fracos, prever regras sobre direitos humanos e impor limites estatais, contudo, a ideia de direito natural ao indivíduo só surgiu na Grécia. A dignidade da pessoa humana surge da ideia de que para se viver deve haver um mínimo existencial, que são direitos inerentes à humanidade desde o seu nascimento até a sua morte.
A base da teoria da evolução histórica dos direitos humanos está ligada aos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade fundamentados na revolução francesa. A primeira geração de direitos tem como escopo principal a liberdade individual, concentrada nos direitos civis e políticos que protegem a integridade humana, põe limites estatais e fomenta o exercício da cidadania. Já os direitos da segunda geração estão ligados aos ideais de igualdade, onde foi exigido que o estado garantisse os direitos sociais, econômicos e culturais através de ações afirmativas. Já os de terceira geração, ligados aos ideais de fraternidade, estão preocupados com os direitos da coletividade.
A quarta geração de direitos foi marcada pelo avanço da tecnologia e, nesse aspecto, o patrimônio genético que visa preservar a diversidade de indivíduos recebeu tutela jurídica, proibindo a manipulação do genoma humano pela engenharia genética, tanto de lei ordinária e declarações internacionais, quanto pela própria constituição federal que procurou protegê-lo no rol de direitos ligados ao meio ambiente, tendo como objetivo a fiscalização das empresas pelo poder público:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público:
(...)
II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;
O direito à preservação do patrimônio genético e a imposição do poder público de fiscalizar empresas que o manipulam e pesquisam, tornam-se constitucionalmente consagrados não podendo ser abolidos, de sorte que “é o direito de todo ser humano de não sofrer interferências artificiais contrárias à própria natureza humana". (WINCKLER, 2010, p. 6825).
Já no âmbito internacional, a UNESCO emitiu a Declaração Universal do Genoma Humano, classificando o genoma humano como patrimônio da humanidade com a intenção de proteger os direitos humanos:
Art. 1 O genoma humano constitui uma base da unidade fundamental de todos os membros da família humana bem como de sua dignidade inerente e diversidade. Num sentido simbólico, é o patrimônio da humanidade.
Art.2
a) A todo indivíduo é devido à sua dignidade e aos seus direitos, independentemente das suas características genéticas.
b) Esta dignidade torna imperativa a não redução dos requisitos às suas características genéticas e ao respeito à sua singularidade e diversidade.
(...)
Art. 6 Nenhum indivíduo deve ser submetido a discriminação com base em características genéticas, que vise violar ou que tenham como efeito a violação de direitos humanos, de liberdades fundamentais e da dignidade humana
(...)
Art. 8 Cada indivíduo terá direito, conforme a legislação nacional ou internacional, à justa indenização por qualquer dano sofrido resultante, direta ou indiretamente, de intervenção sobre seu genoma.
(...)
Art.10 Nenhuma pesquisa ou suas aplicações relacionadas ao genoma humano, particularmente nos campos da biologia, da genética e da medicina, deve prevalecer sobre o respeito aos direitos humanos, às liberdades fundamentais e à dignidade humana dos proprietários ou, quando aplicável, de grupos humanos.
Na esfera infraconstitucional, o poder legislativo regulamentou o dispositivo da Constituição Federal com a lei n. 11.105/2005., denominada Lei de Biossegurança, que foi criada para atuar na fiscalização das atividades de empresas que manipulam organismos geneticamente modificados de maneira a estabelecer responsabilidade civil, administrativa e criminal em decorrência de possíveis condutas ou mesmo atividades consideradas lesivas ao patrimônio genético da pessoa humana.
A proibição está no artigo sexto desta lei e dela decorre várias sanções;
Art. 6º Fica proibido:
III – engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano;
A referida lei estabelece Responsabilidade Civil e Administrativa:
Art. 20. Sem prejuízo da aplicação das penas previstas nesta Lei, os responsáveis pelos danos ao meio ambiente e a terceiros responderão, solidariamente, por sua indenização ou reparação integral, independentemente da existência de culpa.
Art. 21. Considera-se infração administrativa toda ação ou omissão que viole as normas previstas nesta Lei e demais disposições legais pertinentes.
Parágrafo único. As infrações administrativas serão punidas na forma estabelecida no regulamento desta Lei, independentemente das medidas cautelares de apreensão de produtos, suspensão de venda de produto e embargos de atividades, com as seguintes sanções:
I – advertência;
II – multa;
III – apreensão de OGM e seus derivados;
IV – suspensão da venda de OGM e seus derivados;
V – embargo da atividade;
VI – interdição parcial ou total do estabelecimento, atividade ou empreendimento;
VII – suspensão de registro, licença ou autorização;
VIII – cancelamento de registro, licença ou autorização;
IX – perda ou restrição de incentivo e benefício fiscal concedidos pelo governo;
X – perda ou suspensão da participação em linha de financiamento em estabelecimento oficial de crédito;
XI – intervenção no estabelecimento;
XII – proibição de contratar com a administração pública, por período de até 5 (cinco) anos.
Art. 22. Compete aos órgãos e entidades de registro e fiscalização, referidos no art. 16 desta Lei, definir critérios, valores e aplicar multas de R$2.000,00 (dois mil reais) a R$1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais), proporcionalmente à gravidade da infração.
§ 1º As multas poderão ser aplicadas cumulativamente com as demais sanções previstas neste artigo.
§ 2º No caso de reincidência, a multa será aplicada em dobro.
§ 3º No caso de infração continuada, caracterizada pela permanência da ação ou omissão inicialmente punida, será a respectiva penalidade aplicada diariamente até cessar sua causa, sem prejuízo da paralisação imediata da atividade ou da interdição do laboratório ou da instituição ou empresa responsável.
A lei ainda estabeleceu, além da responsabilidade civil e administrativa, sanções penais para quem cometer o crime contra o patrimônio genético, utilizando a engenharia genética, para manipulação do genoma humano:
Art. 25. Praticar engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano ou embrião humano:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Ante o exposto, pode-se concluir que as gerações de direitos acompanharam a evolução da sociedade, procurando proteger o princípio da dignidade humana através de valores socialmente compartilhados.
E, com o avanço da tecnologia, o patrimônio genético está sendo ameaçado pela discriminação genética que compactua com a supremacia racial e põe em risco a equidade racial que pode causar danos psíquicos irreversíveis para várias raças diante das estratégias de dominação.
Quem deve ou não existir é a natureza quem decide, e impôr ao homem a perfeição vai de encontro ao conceito da própria natureza humana. Logo, a quarta geração usou de mecanismos jurídicos para que a manipulação do genoma humano fosse contornada pelo princípio da dignidade humana.
Contudo, os avanços da tecnologia estão em expansão e os tipos penais na legislação penal ainda são muito abrangentes, logo, se faz necessário criminalizar condutas específicas, como a prática de discriminação genética.
Sabrina Santos
Advogada
*Este artigo é produzido com o apoio do Fundo Baobá, por meio do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Ele reflete a opinião da Abayomi Juristas Negras e não dos apoiadores que contribuíram com sua produção.
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